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quarta-feira, 11 de maio de 2011

Corpos

Após primeiro de maio (ou segundo, dependendo de onde você estivesse) uma morte tomou conta da primeira página de várias revistas e jornais, lá estava a cara estampada do príncipe do terrorismo, sempre os mesmos olhos, o relógio na mão direita; as manchetes glamurosas, poéticas, palavras que nos enchem a boca, o peito estufado com o gracioso senso nacionalista que os brasileiros não estão acostumados a tirar da gaveta; ainda assim, timidamente, em meio ao coro de milhares de pessoas entoando "U.S.A.! U.S.A.! U.S.A.!", soccer moms, republicanos, democratas, jovens e militares, a voz de uma senhora dizia:

"Não me sinto bem ao celebrar a morte de quem quer que seja"

Eu imagino que não se possa negar o senso de justiça e reparação que essas notícias devem ter causado na vida de milhares de familiares das vítimas de 11/11, e daquelas tantas outras de atentados que muitas vezes passaram desapercebidos em uma maré de notícias sangrentas às quais estamos tão acostumados, impossivelmente anestesiados, mas que ainda assim nos fazem prestar atenção de quando em quando.

O que me surpreende não é o resultado de tudo isso, não é uma caçada de dez anos, não é o resultado sangrento desse esconde-esconde, o que me surpreende é que tratemos de tudo isso com uma naturalidade incrível, uma bala da cabeça e uma no peito, um enterro relâmpago em pleno Mar Arábico, provas e mais provas bombardeadas e incendiadas, as curiosas versões de uma história que foi acompanhada, na mais perfeita imagem de globalização, ao vivo da Situation Room na casa Casa Branca, pelo presidente Obama, Hillary e outros seletos espectadores, e, mais recentemente, pelo reforço positivo que tudo isso representa nas práticas de tortura - em especial a moda da vez: water boarding - de Guantánamo Bay.

É claro que por trás de tudo isso não está só um corpo, mas um rosto, o rosto de uma organização terrorista que por enquanto fica sem protagonista, mas que tem muitos coadjuvantes a oferecer.

Em meio a tudo, uma coisa é certa, o slogan dos Navy Seals não poderia estar mais correto:

"O dia mais fácil foi ontem."



Reação de Hillary Clinton enquanto assistia, ao vivo, à transmissão.

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Tudo isso me fez lembrar de um texto que eu não lia há muito tempo:

"[...]Falo de gente morta, da coisa horrível que é gente morta. Pessoas lado a lado como estátuas, etiquetas amarradas nos dedos que restaram, formol, clarinadas, bandeiras e serviço religioso. A coisa simples e auto-resolvível que é uma pessoa morta. Muitas, muitas, muitas pessoas mortas.

Não falo de piedade, de reconhecimento, de revolta, de indiferença. Falo só de mortos. Muitos e muitos mortos. Vamos esquecê-los depressa, trocá-los por outras coisas, eleger símbolos, guardar imagens: uma torre explodindo ou desabando, um avião desgovernado. Nem sempre nos lembraremos da morte física, dos corpos, dos cheiros. Não nos lembraremos do que não vimos.

Repentinamente descolados dos nossos umbigos, voltaremos. No dia-a-dia, nossos horrores são outros. E cada corpo, cada morto novo, em vez de ser uma lembrança, será sempre uma surpresa. Porque ninguém se lembra de cadáveres."


Corpos - Orlando Tosetto Jr.

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